Saramago disse muitas vezes que não escrevia para pessoas conformadas
ou satisfeitas; escrevia para leitores desassossegados. A sua escrita pretendia
desassossegar. Ensaio sobre a Lucidez é mais um exemplo disso. Decorria o ano de
2004, Saramago, vencedor do Prémio Nobel da Literatura de 1998 já era uma
figura mundialmente aclamada, tinha 82 anos, quem pensava que o Nobel e a idade
levariam o autor ao conformismo, enganou-se! Saramago publicava mais um livro
que desagrada às tais pessoas conformadas e satisfeitas. Desta vez, políticos e
cidadãos eram responsabilizados pelo estado a que a democracia chegou.
“Vi que eram
quatro horas e disse para a família Vamos, é agora ou nunca.”
Na mesma cidade
onde há uns anos uma estranha doença designada Cegueira Branca tinha-se
instalado, decorria um ato eleitoral. A cidade era conhecida por ter uma
democracia consolidada. Estranhamente, mesmo tento em conta as condições
climatéricas adversas, eram muito poucos os votantes até às três da tarde. Sem
uma razão aparente, a partir das quatro horas da tarde a população dirigiu-se
massivamente as mesas de voto, já passava da meia-noite quando o ato eleitoral
acabou.
“Os votos validos
não chegavam a vinte e cinco porcento, distribuídos pelo partido de direita,
treze por cento, pelo partido do meio, nove por cento, e pelo partido de esquerda,
dois e meio porcento. Pouquíssimos votos nulos, pouquíssimas as abstenções.
Todos os outros, mais de setenta por cento da totalidade, estavam em branco.”
O estado de sítio
foi declarado; os políticos não percebiam o que estava acontecer e temiam que
outras cidades se inspirarem no que ali se passava; a censura voltou a ser
utilizada; houve quem propusesse a construção de um muro em torno da cidade. Governo,
polícia e militares abandonaram a cidade, mas estranhamente nada de novo se
passava, as pessoas continuavam com a sua vida, normalmente. Porquê? Como era
possível? Simplesmente os habitantes tinham tido a lucidez e a consciência da
sua responsabilidade.
“O único crime
desta gente foi votar em branco, não teria importância de maior tivessem sido
só os do costume, mas foram muitos, foram demasiados, foram quase todos.”
Não basta
culparmos os banqueiros, os políticos, ou os economistas pelo atual estado da
nação. Não tivemos consciência, não dissemos Não, vivemos sem a lucidez destes
habitantes e chegámos há situação atual. Culpados, nós? Sim, pela inércia, pela
falta de consciência, porque deixámos que tudo fizessem sem nada opormos.
Numa altura em
que se comemora os noventa anos do nascimento de José Saramago, está é, pelas
piores razões, uma obra mais atual do que há data da sua publicação.
Boa leitura….